terça-feira, 12 de maio de 2009

Voyeur*


Geilson Volking


         
         Quando lhe bateram a porta dois anos após o acidente, Charles tinha 45 de idade e um copo de uísque na mão.
Levemente embriagado, como de costume, apanhou a bengala e mancou em direção a entrada.
              Limpou a boca. Acendeu a luz. Abriu.
— Boa noite — disse ela.
Sem dizer palavra, fez menção para que entrasse.
E ela entrou. Sentou-se no sofá diante da poltrona e cruzou as pernas. Estava bonita. Aliás, típico. Abriu a bolsa e tirou uma carteira de cigarros.
— Se incomoda?
— Não, pode ficar à vontade.
Ele se acomodou na poltrona.
— Desde quando você fuma?
— Já algum tempo.
Pela primeira vez seus olhos se cruzaram.
— Você está muito bem — disse ele.
— Você também não está nada mal.
Charles balançou a cabeça.
— Por favor, não seja irônica. Bebe? — perguntou mostrando-lhe o copo de uísque.
— Não, obrigada.
— Por que veio aqui?
— Eu... precisava te ver.
— Já faz dois anos.
— É, eu sei.
— E por que tanto tempo?
— Eu precisava... como posso dizer...
— Esclarecer as ideias?
— Isso.
Charles esticou o braço e apanhou a garrafa que estava no chão, como um cão obediente ao lado da poltrona. Encheu o copo e colocou-a no mesmo lugar.
Ela olhava ao redor.
— Não toquei em nada... está como você deixou.
— Realmente. Você tem cinzeiro?
— No mesmo lugar... pega?
— Claro.
— E as crianças? — perguntou ele.
— Estão bem. Perguntam sempre por você.
— Tenho que vê-las...
Ele se levantou. Na estante, puxou um vinil e o pôs no toca-discos. A música começou a soar sugestiva pela sala.
— Lembra-se?
Ela sorriu.
— Como eu poderia esquecer — disse voltando à cadeira. — Era a nossa música.
— Era?
Ela parou de sorrir.
— Sim, era.
Charles retornou à poltrona. Tomou um trago. Massageou a perna.
— E o joelho, como está?
— Dói mais quando faz frio. Aí eu tomo uns analgésicos... pra aliviar. Como ultimamente está fazendo um calor danado...
— Você tem que fazer fisioterapia.
— Eu fazia, mas parei.
— Por quê?
— Sem saco.
Ficaram em silêncio. Depois de algum tempo, ele murmurou:
— Sinto saudades.
Ela baixou a cabeça.
— Não deveria ter sido assim, Georgia.
— Você não tem culpa...
— Todo dia eu procuro um motivo pra não me jogar daquela janela. Às vezes eu acho que não dá mais. Sou fraco. A solidão é a pior coisa que existe. É duro não ter com quem conversar.
— E por que você não sai, procura fazer amigos, namorar?
— Eu não consigo. Só quero ficar aqui tomando o meu uísque, escutando o meu som...
— Até quando?
— Sei lá... até morrer, quem sabe.
— Não diga isso.
Charles encheu novamente o copo.
— Depois que vocês foram embora, nada mais faz sentido pra mim. Larguei o trabalho, o Partido, mandei tudo pro inferno.
— Não faça isso, Charles.
— O que é que você quer que eu faça?
— Há outros caminhos.
— É muito fácil falar. Queria ver se estivesse no meu lugar.
— Você está sendo egoísta.
— Eu?! Egoísta?... Dois anos sem dar as caras!
— Eu tive meus motivos.
— Outro homem deve ser um ótimo motivo.
— Não fale bobagem.
— Por que bobagem? Você é jovem, bonita. Onde quer que você esteja, sempre vai ter alguém lambendo os seus pés.
— Você não sabe o que está dizendo.
Ele ficou em silêncio.
— É, acho que não.
— Olhe, Charles, eu sei que você está sofrendo muito. Eu também sofro com tudo isso, mas não dá. Temos que encarar os fatos. Eu não queria que fosse assim. Mas muitas vezes as coisas não saem como planejamos. Talvez pudesse ter sido diferente, mas “talvez” não muda nada, entende? Você tem que dar a volta por cima. Há muito chão pela frente...
— Eu sei. Mas sem vocês, sem minha família... por que não voltam pra mim? Podemos começar tudo de novo.
— Não, não dá.
— Por que não?
— Porque não.
— Então pra que diabos você veio aqui, porra?! — gritou ele.
— Pra ver como você estava.
— Pois aqui estou — disse ele se levantando. — Está vendo? É isso que sobrou de mim. Restos!
Silêncio.
Ela apanhou a bolsa.
— Tenho que ir.
— Como?
— Preciso ir.
— Por quê?
Ela se levantou:
— Me leva até a porta?
— Georgia, por favor.
— Desculpa, eu não deveria ter vindo aqui.
— Não, Georgia, me perdoe. Eu estou nervoso, não sei o que estou dizendo. Eu...
— Tudo bem... mas preciso ir.
— Fica mais um pouco.
— Não dá.
— Dança comigo.
Ela olhou-o nos olhos.
— Dançar?
— Por favor.
Georgia ficou em silêncio por um grande espaço de tempo, escutando Ray Charles debruçado sobre o piano. Então se aproximou e o abraçou.
E naquela sala de apartamento no oitavo andar, ao som da música que era deles, dançaram. E ao sentir que Charles chorava, Georgia o abraçou mais forte ainda, e também chorou. Pelo passado, pelo destino que poderia ter sido diferente.

Há cem metros dali, por trás das lentes de um binóculo, um homem no prédio ao lado observava toda aquela cena: um cara bêbado dançando sozinho às três horas da madrugada em sua sala de estar.



          Geilson Pereira da Silva (Geilson Volking)

         *Esse  conto obteve o 1º lugar no Concurso de contos da Cooperativa Cultura da UFRN - 2007.

2 comentários:

Elson disse...

Louco, depois de certamente ter destruído a família em um acidente de carro em que dirigia bêbado, essa foi a minha ilusão. Gostei, não vou dar nota porque não sou um conhecedor das literaturas. Tens futuro ta se perdendo nos correios... kkkk

Geilson Volking disse...

Valeu, Cedrin. Quando eu ganhar o Nobel, vou dedicar a você.

Kkkkkkkk