Geilson Volking
Quando lhe bateram a porta dois anos após o acidente, Charles tinha 45 de idade e um copo de uísque na mão.
Levemente
embriagado, como de costume, apanhou a bengala e mancou em direção a entrada.
Limpou a boca. Acendeu a luz. Abriu.
— Boa
noite — disse ela.
Sem
dizer palavra, fez menção para que entrasse.
E ela
entrou. Sentou-se no sofá diante da poltrona e cruzou as pernas. Estava bonita.
Aliás, típico. Abriu a bolsa e tirou uma carteira de cigarros.
— Se
incomoda?
— Não,
pode ficar à vontade.
Ele se
acomodou na poltrona.
—
Desde quando você fuma?
— Já
algum tempo.
Pela
primeira vez seus olhos se cruzaram.
— Você
está muito bem — disse ele.
— Você
também não está nada mal.
Charles balançou a cabeça.
— Por
favor, não seja irônica. Bebe? — perguntou mostrando-lhe o copo de uísque.
— Não,
obrigada.
— Por
que veio aqui?
—
Eu... precisava te ver.
— Já
faz dois anos.
— É,
eu sei.
— E
por que tanto tempo?
— Eu
precisava... como posso dizer...
—
Esclarecer as ideias?
—
Isso.
Charles esticou o braço e apanhou a garrafa que estava no chão, como um cão obediente
ao lado da poltrona. Encheu o copo e colocou-a no mesmo lugar.
Ela
olhava ao redor.
— Não
toquei em nada... está como você deixou.
—
Realmente. Você tem cinzeiro?
— No
mesmo lugar... pega?
—
Claro.
— E as
crianças? — perguntou ele.
—
Estão bem. Perguntam sempre por você.
—
Tenho que vê-las...
Ele se
levantou. Na estante, puxou um vinil e o pôs no toca-discos. A música começou a soar sugestiva pela sala.
—
Lembra-se?
Ela
sorriu.
— Como
eu poderia esquecer — disse voltando à cadeira. — Era a nossa música.
— Era?
Ela
parou de sorrir.
— Sim,
era.
Charles retornou à poltrona. Tomou um trago. Massageou a perna.
— E o
joelho, como está?
— Dói
mais quando faz frio. Aí eu tomo uns analgésicos... pra aliviar. Como
ultimamente está fazendo um calor danado...
— Você
tem que fazer fisioterapia.
— Eu
fazia, mas parei.
— Por
quê?
— Sem
saco.
Ficaram
em silêncio. Depois de algum tempo, ele murmurou:
—
Sinto saudades.
Ela
baixou a cabeça.
— Não
deveria ter sido assim, Georgia.
— Você
não tem culpa...
— Todo
dia eu procuro um motivo pra não me jogar daquela janela. Às vezes eu acho que
não dá mais. Sou fraco. A solidão é a pior coisa que existe. É duro não ter com
quem conversar.
— E
por que você não sai, procura fazer amigos, namorar?
— Eu
não consigo. Só quero ficar aqui tomando o meu uísque, escutando o meu som...
— Até
quando?
— Sei
lá... até morrer, quem sabe.
— Não
diga isso.
Charles encheu novamente o copo.
—
Depois que vocês foram embora, nada mais faz sentido pra mim. Larguei o
trabalho, o Partido, mandei tudo pro inferno.
— Não
faça isso, Charles.
— O
que é que você quer que eu faça?
— Há
outros caminhos.
— É
muito fácil falar. Queria ver se estivesse no meu lugar.
— Você
está sendo egoísta.
— Eu?!
Egoísta?... Dois anos sem dar as caras!
— Eu
tive meus motivos.
—
Outro homem deve ser um ótimo motivo.
— Não
fale bobagem.
— Por
que bobagem? Você é jovem, bonita. Onde quer que você esteja, sempre vai ter
alguém lambendo os seus pés.
— Você
não sabe o que está dizendo.
Ele
ficou em silêncio.
— É,
acho que não.
—
Olhe, Charles, eu sei que você está sofrendo muito. Eu também sofro com tudo
isso, mas não dá. Temos que encarar os fatos. Eu não queria que fosse assim.
Mas muitas vezes as coisas não saem como planejamos. Talvez pudesse ter sido
diferente, mas “talvez” não muda nada, entende? Você tem que dar a volta por
cima. Há muito chão pela frente...
— Eu
sei. Mas sem vocês, sem minha família... por que não voltam pra mim? Podemos
começar tudo de novo.
— Não,
não dá.
— Por
que não?
—
Porque não.
—
Então pra que diabos você veio aqui, porra?! — gritou ele.
— Pra
ver como você estava.
— Pois
aqui estou — disse ele se levantando. — Está vendo? É isso que sobrou de mim.
Restos!
Silêncio.
Ela
apanhou a bolsa.
—
Tenho que ir.
—
Como?
—
Preciso ir.
— Por
quê?
Ela se
levantou:
— Me
leva até a porta?
— Georgia, por favor.
—
Desculpa, eu não deveria ter vindo aqui.
— Não, Georgia, me perdoe. Eu estou nervoso, não sei o que estou dizendo. Eu...
— Tudo
bem... mas preciso ir.
— Fica
mais um pouco.
— Não
dá.
—
Dança comigo.
Ela
olhou-o nos olhos.
—
Dançar?
— Por
favor.
Georgia ficou em silêncio por um grande espaço de tempo, escutando Ray Charles
debruçado sobre o piano. Então se aproximou e o abraçou.
E
naquela sala de apartamento no oitavo andar, ao som da música que era deles,
dançaram. E ao sentir que Charles chorava, Georgia o abraçou mais forte ainda, e
também chorou. Pelo passado, pelo destino que poderia ter sido diferente.
Há cem
metros dali, por trás das lentes de um binóculo, um homem no prédio ao lado
observava toda aquela cena: um cara bêbado dançando sozinho às três horas da
madrugada em sua sala de estar.
Geilson Pereira da Silva (Geilson Volking)
*Esse conto obteve o 1º lugar no Concurso de contos da Cooperativa Cultura da UFRN - 2007.
2 comentários:
Louco, depois de certamente ter destruído a família em um acidente de carro em que dirigia bêbado, essa foi a minha ilusão. Gostei, não vou dar nota porque não sou um conhecedor das literaturas. Tens futuro ta se perdendo nos correios... kkkk
Valeu, Cedrin. Quando eu ganhar o Nobel, vou dedicar a você.
Kkkkkkkk
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